terça-feira, 7 de setembro de 2010

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor e porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo à luz. E, à medida que se acostuma se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Acostuma-se para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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